Marilena Chauí
Para que o
poder econômico da burguesia pudesse enfrentar o poder político dos reis e da
nobreza, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão
grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à
nobreza. Em outras palavras, assim como o sangue e a hereditariedade davam à
realeza e à nobreza um fundamento natural para o poder e o prestígio, a
burguesia precisava de uma teoria que desse ao seu poder econômico também um
fundamento natural, capaz de rivalizar com o poder político da realeza e o
prestígio social da nobreza, e até mesmo superá-los.
Essa teoria
será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira
formulação coerente será feita pelo filósofo inglês John Locke no final do
século XVII e início do século XVIII.
Locke parte
da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens
necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.
Como fazer
do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?
Deus,
escreve Locke, é um artífice, um arquiteto e engenheiro que fez um obra: o
mundo. Este, como obra do trabalho divino, a ele pertence. É seu domínio e sua
propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para
que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do
mundo, mas lhe disse que o teria com o suor do seu rosto. Por todos esses
motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à
propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem
divina, ela é um direito natural.
O Estado
existe a partir do contrato social. Sua principal finalidade é garantir o
direito natural de propriedade.
Dessa maneira,
a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais
do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário
graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da
sociedade ou do trabalho alheio.
O burguês
não se reconhece apenas superior social e moralmente aos nobres, mas também
como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a
todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade
privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se
proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não
são proprietários e têm a obrigação de trabalhar para outros, seja porque são
perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir
propriedades, seja porque são preguiçosos e não trabalham o suficiente para
conseguir uma propriedade.
Referência Bibliográfica: (Marilena Chaui, Convite à filosofia, São Paulo, Ática,
2005, cap. 11 – “As filosofias políticas”; a teoria liberal, p. 374s).
PARA REFLETIR...
1. Qual a
importância da teoria liberal de Locke para a sua época?
2. Por que,
segundo Locke, existe a desigualdade social?
3. E
atualmente, a teoria de Locke faz sentido? A sociedade capitalista pensa assim
em relação à propriedade?