quarta-feira, 24 de junho de 2020

PLATÃO E A JUSTA DESIGUALDADE

                                                                  Introdução

Vamos introduzir uma discussão sobre a política com base nas possibilidades e na qualidade da participação política. Além disso, propomos uma reflexão sobre a democracia pautando-se pela perspectiva antidemocrática de Platão (428-348 a.C). Nesse sentido, deveremos atentar para como Platão explica a desigualdade de classes na sociedade ateniense em seu tempo, valendo-nos, para tanto, da obra A República. Abordaremos, basicamente, a concepção platônica de justiça e a teoria da alma, elementos importantes para a compreensão da visão platônica sobre o tema.

Para início de conversa, propomos uma questão: Quais são os pontos fortes e quais são as fragilidades que conseguimos observar no cotidiano em relação à democracia brasileira?

A democracia é um regime que permite e requer diversidade de opiniões, a criação de organizações, associações, movimentos e partidos e, por isso, é na democracia que os conflitos e disputas são uma constante e possibilitam a manutenção e a ampliação de direitos. Ou seja, quanto mais vozes tiverem o direito de ser ouvidas, mais conflitos e disputas se farão presentes na sociedade democrática e é por isso que a democracia tem o potencial de se abrir para revisões e transformações da realidade. A democracia caracteriza-se pela pluralidade de vozes e, portanto, o pior que pode acontecer com a democracia é a violência que promove o medo e tende a provocar o silêncio.

A justiça na República Platônica

            Justiça, apesar do seu uso corrente, é um conceito de difícil demarcação. Os dicionários referem-se à justiça, entre outras possibilidades, como distribuição que permite a cada um ter o que é seu e/ou que tal distribuição seja feita de forma imparcial. Essas possibilidades de entender a justiça parece ter relação com o que entendemos, de forma geral, por justiça. Nesse contexto, como a cidade poderia funcionar de maneira mais justa?

Platão e a teoria da alma

Questão filosófica: A desigualdade social é natural ou criada pelos seres humanos?

A noção que Platão tem de justiça é reforçada pela sua teoria da alma. Para ele, assim como na cidade há três classes distintas, também a alma humana possui três partes, cada uma encarregada de uma função específica:

1. Parte concupiscente ou apetitiva: situada no baixo-ventre (entre o diafragma e o umbigo), é a parte da alma responsável pela busca da bebida, da comida, do sexo, dos prazeres, enfim, de tudo quanto é necessário à conservação do corpo e à reprodução da espécie. É irracional e mortal.

2. Parte colérica ou irascível: irascível é quem se irrita ou se enraivece com facilidade. Localizada no peito, acima do diafragma, sua função é defender o corpo contra tudo o que possa ameaçar sua segurança. Também é irracional e mortal.

3. Parte racional: é a função superior da alma, o traço divino que há em nós. Situada na cabeça, é responsável pelo conhecimento. Apenas essa parte é imortal.

O homem virtuoso é aquele em que cada parte da alma realiza na medida justa (sem falta nem excesso) a função que lhe cabe, sob a regência da parte racional. Cabe, portanto, à parte racional dominar as outras duas. O domínio da razão sobre a concupiscência resulta na virtude da temperança (moderação); o domínio da razão sobre a cólera produz a virtude da coragem ou da prudência. A virtude própria da parte racional é o conhecimento.

Por outro lado, o homem vicioso é aquele em que as partes da alma não conseguem realizar suas funções próprias, ou as realizam desmesuradamente (sem medida), o que ocorre quando a parte racional perde o comando sobre as outras duas. Nesse caso, instaura-se a desordem, o conflito, a violência contra si e os demais.

Ora, o que vale para o homem individualmente vale também, de certo modo, para a cidade e as três classes sociais nela existentes:

1-Na classe econômica, predomina a parte concupiscente da alma. Daí ela estar sempre voltada para a obtenção de riquezas e prazeres. Assim, se essa classe assumir o governo, a cidade será mergulhada em sérios problemas econômicos, aprofundando as desigualdades.

2-Na classe dos guerreiros, predomina a parte colérica, razão pela qual apreciam os combates e a fama. Se governarem, a cidade viverá em constante estado de guerra, tanto interna quanto externamente, gerando insegurança e instabilidade.

3-Na classe dos magistrados, predomina a parte racional da alma, o que lhe favorece conhecer a ciência da política e, desse modo, governar as outras duas classes e em conformidade com a justiça.

Em suma, assim como o homem justo é aquele em que a razão governa a cólera e a concupiscência, também na cidade, para haver justiça, é preciso que os magistrados governem as demais classes, dedicando-se estas às funções que lhes são próprias.

Caberá à educação preparar os indivíduos de cada classe para o exercício da função e da virtude a ela correspondentes. Assim, a classe econômica deve ser educada para a frugalidade e a temperança; a classe militar, para a coragem; e a classe dos magistrados, para a prudência. O resultado dessa combinação será uma quarta e principal virtude: a justiça.

Assim, a cidade justa é aquela em que cada classe cumpre harmoniosamente o papel que lhe cabe: o magistrado governa, o soldado defende e a classe econômica provê a subsistência dos cidadãos, tudo na mais perfeita harmonia. Desse modo, cada um exercendo a função correspondente às inclinações de sua alma, às características de sua natureza, todos concorrerão para a realização da justiça. Eis, portanto, como Platão legitima e justifica a desigualdade entre as classes, apresentado-a como expressão da justiça e instrumento para a realização do bem comum.

Conclusão

É importante realçar, retomando a questão filosófica: se a desigualdade social é natural ou criada pelos seres humanos, que a visão de Platão sobre as classes sociais conduz a certa naturalização da desigualdade e, nesse sentido, diferenças justificam as desigualdades. A posição  platônica, dessa forma, não considera a convenção (como possivelmente pensavam os sofistas, adversários políticos de Platão), isto é, deixa de ser considerada como obra humana, e passa a ser entendida como expressão da natureza intrínseca ao homem, como fruto de uma espécie de disposição inata das pessoas para exercer determinado papel na sociedade, disposição que se justifica por uma ideia de bem e justiça.

Resumo

Platão entende que, assim como no corpo, naturalmente, há partes desiguais, a desigualdade entre as classes sociais também é natural. Ele observa que as pessoas nascem diferentes, com habilidades e tendências diferentes, e isso não é um problema. Alguns nascem para o trabalho braçal, outros para defender e outros para governar. Se cada um fizer bem a sua função, toda a cidade será justa. Por isso, o título deste texto... “Platão e a justa desigualdade”. Portanto, a visão de Platão é antidemocrática, pois ele considera que nem todos nascem com sabedoria para governar. O filósofo defende um tipo de governo aristocrático, onde quem governa deve ser o filósofo, o mais sábio (é o Rei-filósofo).  Essa concepção será contrariada, mais adiante, por Rousseau, para quem a desigualdade não é natural, mas resulta de uma convenção, ou seja, é produzida pelos seres humanos. É o que veremos na próxima aula...

 

Para aprofundar, refletir e construir o conhecimento:

(Responda em seu caderno de Filosofia)

1-Descreva, conforme o texto, o que caracteriza uma democracia.

2-Quais são as três partes da alma, pensadas por Platão, e qual á e a característica de cada uma?

3-Como é o homem virtuoso e o homem vicioso, conforme Platão?

4-Quais são as três classes da cidade e qual a caraterística de cada uma?

5-Para Platão, a desigualdade social é natural ou produzida? Justifique sua resposta.

 

Referências Bibliográficas

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2016.

São Paulo Faz Escola. Caderno do Aluno - 3ª Série - 2º Bimestre. 2020.

Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor; filosofia, ensino médio, 3a série / Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli, Renê José Trentin Silveira.  -  São Paulo: SE, 2014.


segunda-feira, 22 de junho de 2020

O indivíduo a partir do pensamento de John Locke


John Locke
Na segunda metade do século XVII, na Inglaterra, localizamos o pensamento de John Locke (1632-1704), considerado um dos precursores da crítica ao Estado absoluto (o poder dos reis). Locke defendia que, por causa da sua condição racional, todos os homens nascem livres e iguais, e, por isso, com direito à vida e à propriedade: essa é uma lei natural a partir da qual deve derivar toda lei civil (criada). O governo que não garantir, mediante as leis, esse pressuposto básico, contraria a própria condição humana em sua essência, que consiste na liberdade.

Locke, um crítico do poder absoluto dos reis        

            O liberalismo dLocke caracteriza-se, dessa maneira, como a crítica do direito divino atribuído aos soberanos e, de um modo geral, como crítica ao próprio absolutismo (governo dos reis). Considera que o poder de um Estado só é legítimo quando é originário da vontade do povo, que, dessa forma, não pode abrir mão dele.

            Nessa compreensão, a liberdade e os demais direitos individuais adquirem maior importância do que a sociedade e o próprio Estado, que só se torna legítimo quando garante que os direitos inalienáveis (que não podem ser tirados) à vida e à propriedade, bem como os demais interesses essenciais à existência plena dos cidadãos, sejam respeitados.

 

A teoria dos direitos naturais

Locke é um dos principais representantes do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. O modelo jusnaturalista de Locke é, em suas linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Na sua concepção individualista, os homens viviam inicialmente num estado de natureza como uma condição na qual, pela falta de uma normatização geral, cada um seria juiz de sua própria causa, o que levaria ao surgimento de problemas nas relações entre os indivíduos.

Para evitar esses problemas é que o Estado teria sido criado. Sua função seria a de garantir a segurança dos indivíduos e de seus direitos naturais, como a liberdade, a vida e a propriedade. Locke concebe a sociedade política como um meio de assegurar os direitos naturais. Assim nasce a concepção de Estado Liberal, segundo a qual o Estado deve regular as relações entre os indivíduos e atuar como juiz nos conflitos sociais.

 

O homem no estado de natureza, o contrato social e o estado civilizado

No estado de natureza os seres humanos eram livres porque não precisavam pedir permissão ou depender da vontade de outro homem; eram iguais pois nenhum possuía nada a mais que outro, recebendo todos as mesmas vantagens da Natureza. A garantia de vida vinha por serem iguais e independentes, e por isso, os homens não deveriam prejudicar uns aos outros e poderiam punir quem viesse a ameaçar a vida deles.

Para Locke, no estado de natureza os homens vivem situação de paz. Porém, ele entende que esse estado de paz é ameaçado quando um homem coloca outro sob seu poder e o submete à sua vontade. Rompe-se, assim, o estado de natureza e instala-se o estado de guerra. Para recuperar o estado de paz, é necessário que os homens se unam em um contrato por meio do qual evitem os inconvenientes do estado de guerra.

Por meio desse contrato, reafirmavam-se  e aseguravam-se os direitos naturais. Além disso, os homens concordaram que, para evitar que esses direitos fossem apoderados de forma violenta, deveriam eleger um governo, ao qual caberia defendê-los. Note que o governo, o Estado deve proteger os direitos dos indivíduos.

Assim, todos deveriam respeitar a vida, a propriedade e a liberdade, e o governo ou o Estado seria responsável para que isso não deixasse de acontecer, lutando com quem quer que fosse que tentasse desrespeitar essa condição natural.  A partir disso, para Locke, começou a civilização. Resumindo: sai-se do estado de natureza, cria-se um contrato social e entra-se no estado civilizado.

 

O Estado liberal

liberalismo é o princípio que defende a ideia da liberdade política e econômica, ou seja, o Estado não deve controlar a economia e as relações sociais. Adotam principalmente a ideia da liberdade individual e mercantil, o individualismo é altamente defendido pelos liberais e cada indivíduo deve ser igual e livre perante os direitos humanos e as leis, sem que a hierarquização e diferenças sociais sejam colocadas em consideração.

Esse pensamento é importante porque foi sobre ele que o capitalismo encontrou uma das suas bases teóricas para o seu desenvolvimento. Uma característica fundamental do capitalismo nascente era a propriedade individual, adquirida pelo trabalho e o fim da propriedade coletiva ou da riqueza herdada (que era o caso dos nobres e reis). O indivíduo tornou-se o centro da atividade econômica e jurídica (referente às leis). O indivíduo consome e produz. Portanto, é em vista dele que são feitas as leis que organizam as relações sociais.

 

O direito natural e o direito positivo

Para Locke, o Direito Natural é diferente do Direito Positivo. O Direito Natural seria originário da razão correta – assim como a natureza tem suas leis, o homem também teria, por natureza, as suas. Já o Direito Positivo seria o conjunto de leis que os homens criam para conviver em sociedade.       

Em Locke, a liberdade, a propriedade e a vida formam o Direito Natural de cada indivíduo. No entanto, para mantê-lo, o homem precisa conviver com outros que têm o mesmo Direito Natural; então, para que o convívio seja possível, os homens necessitam produzir leis positivasno sentido de inventadas – para a manutenção desses mesmos direitos naturais. Assim, a partir do Direito Natural de cada um, cria-se o Direito Positivo a que todos têm de obedecer.

 

No liberalismo o indivíduo ocupa o lugar central

Na filosofia de Locke, há a valorização do indivíduo como agente (aquele que faz) histórico e jurídico – o indivíduo faz a história e cria leis – é também responsável pela produção e aquisição do conhecimento, sendo a felicidade o objetivo último da realização individual.        

Por isso, toda ação depende necessariamente do indivíduo. O tipo de governo que ele deixa existir, o tipo de relações sociais sob as quais viverá; enfim, sua felicidade ou tristeza não competem mais ao rei ou a senhor feudal, mas somente ao indivíduo.

 

Para refletir e construir o conhecimento: (responder no caderno de Filosofia)

1-O que é, para Locke, o “estado natural” ou “estado de natureza” e que direitos possuíam os homens nesse estado?

2-O que caracteriza o liberalismo e qual é a crítica feita por Locke ao regime político de sua época.

3-Qual a importância do “Contrato social” para o indivíduo e o Estado civilizado?

4-Explique o que é Direito Natural e Direito Positivo.

5-Que importância tem o indivíduo no Estado liberal?


Referências Bibliográficas:

CARNEIRO, Mari. Temas de Filosofia para o Ensino Médio. Curitiba: Aymará, 2009.

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2016.

São Paulo (Estado) Secretaria da Educação.

Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor; filosofia, ensino médio, 2a série / Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli, Renê José Trentin Silveira.  -  São Paulo: SE, 2014.


terça-feira, 2 de junho de 2020

ARISTÓTELES - Bases do pensamento lógico e científico


Biografia

Aristóteles, Escola de Atenas
                Continuando nossa viagem pela História da Filosofia, vamos agora conhecer um pouco sobre outro importante pensador. Nascido em Estagira (por isso era chamado de “O Estagirita”), na Macedônia, Aristóteles (384-322 a.C.) foi, ao lado de Platão, um dos mais expressivos filósofos gregos da Antiguidade. Há informações de que teria escrito mais de uma centena de obras sobre os mais variados temas, das quais restam apenas 47. Desempenhou extraordinário papel na organização do saber grego, acrescentando-lhe uma contribuição que impactou a história do pensamento ocidental.

                Filho de Nicômaco, médico do rei da Macedônia, provavelmente herdou do pai o interesse pelas ciências naturais. Aos 18 anos foi para Atenas e ingressou na Academia de Platão, onde permaneceu cerca de 20 anos. Com a morte de Platão em 347 a.C., não pode assumir a direção da Academia por ser considerado estrangeiro pelos atenienses.

                Decepcionado, deixou a Academia e partiu para a Ásia Menor, onde foi convidado por Felipe II, rei da Macedônia, para ser professor de seu filho, Alexandre, que posteriormente foi um importante governante do império macedônico a partir de 340 a.C.
Os Peripatéticos
                Por volta de 335 a.C., Aristóteles regressou a Atenas, fundado sua própria escola filosófica, que passou a ser conhecida como Liceu, onde ensinou por aproximadamente 12 anos. Seus discípulos ficaram conhecidos como peripatéticos, pois o filósofo tinha o hábito de ensinar ao ar livre, muitas vezes sob as árvores. (peripatético significa ambulante, itinerante, que anda).

                Apaixonado pela biologia, dedicou inúmeros estudos à observação da natureza e à classificação dos seres vivos. Tendo em vista a elaboração de uma visão científica da realidade, desenvolveu a lógica para servir de ferramenta do raciocínio correto.

Método indutivo

                Para Aristóteles a ciência deveria partir da realidade sensorial para desvendar a constituição essencial dos seres. Isto é, da experiência concreta (empírica). Em outras palavras, a partir da existência do ser individual, devemos atingir sua essência, seguindo um processo de conhecimento que caminharia do individual e específico para o universal genérico, isso é o método indutivo. O conceito escola, por exemplo, é o resultado da observação das diferentes instituições às quais se atribuiu o nome escola. Somente dessa maneira o conceito escola pode ter sentido universal. É por meio do método indutivo que o ser humano pode atingir conclusões científicas, conceituais, de âmbito universal.

Matéria e forma

                Aristóteles era um grande observador da natureza, considerado por muito o primeiro biólogo que existiu. Para ele, as coisas são o que são em sua própria natureza, ou seja, o ser verdadeiro deve ser imanente. Todas as coisas estariam constituídas de dois princípios inseparáveis:

- Matéria (hylé, em grego) – o princípio indeterminado dos seres, mas que é determinável pela forma. Exemplo: madeira;
- Forma (morphé, em grego) – o princípio determinado em si próprio, mas que é determinante em relação à matéria. Exemplo: cadeira de madeira.

Assim, tudo o que existe é composto de matéria e forma, daí o nome hilemorfismo (matéria + forma) para designar essa doutrina. Note que é a forma que faz as coisas serem o que são. Por exemplo, uma cadeira de madeira só é reconhecida como cadeira por causa da sua forma, se não fosse a forma seria apenas alguns pedaços de madeira (matéria). Outro exemplo: um anel de ouro é derretido para converter-se em uma corrente de ouro, muda-se a forma (de anel para corrente), mas mantém-se a matéria (ouro).

Quatro causa dos seres

                Observe que, quando falamos de uma semente que se transforma em árvore e em um anel que se converte em corrente, estamos nos referindo a duas classes distintas de seres. No primeiro caso, temos um ser natural, no qual a mudança (ou movimento) ocorre por um princípio interno, intrínseco, conforme explicou Aristóteles. No segundo caso, por sua vez, temos um ser artificial, cuja transformação (ou movimento) se dá por um princípio externo, extrínseco.

                Em outras palavras, os seres naturais modificam-se, basicamente, de acordo com sua própria natureza, enquanto os seres artificiais dependem em boa medida de elementos externos para que isso ocorra.

                Há, portanto, princípios intrínsecos e extrínsecos que levam os seres ao movimento, à passagem da potência (aquilo que o ser ainda não é e o que pode vir a ser, exemplo: semente) para o ato (aquilo que o ser já é, exemplo: árvore). Esses princípios são o que o filósofo chamou de causas.

                Aristóteles distinguiu quatro tipos de causas fundamentais:

- Causa material: refere-se à matéria de que é feita uma coisa. Exemplo: a madeira utilizada na confecção de uma cadeira.
- Causa formal: refere-se à forma, à natureza específica, à configuração de uma coisa, tornando-a “um ser propriamente dito”. Exemplo: a forma de uma cadeira, que é diferente de uma mesa.
- Causa eficiente: refere-se ao agente, àquele que produz diretamente a coisa, transformando a matéria tendo em vista uma forma. Exemplo: o marceneiro que faz a cadeira.
- Causa final: refere-se ao objetivo, à intenção, à finalidade ou à razão de ser de uma coisa. Exemplo: a cadeira serve para as pessoas se sentar.

                Nos seres artificiais (como a cadeira do nosso exemplo), todas essas causas intervêm, sendo as duas últimas extrínsecas a esses seres.

                Nos seres naturais, a causa eficiente não ocorre, pois eles podem surgir e ser o que são por natureza, isto é, fazem-se por si mesmos, não dependendo de uma causa externa.

Assim, as diferentes relações entre as quatro causas explicam tudo o que existe, o modo como existe e se altera, e o fim ou motivo para o qual existe.

Aristóteles, como vimos tem uma vasta contribuição para o saber. Escreveu, dentre outros temas, sobre ética, política e lógica, mas esses são assuntos que trataremos em outras aulas.


QUESTÕES PARA O ESTUDO, A REFLEXÃO E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
(Responder no Caderno de Filosofia)

1) Como ficou conhecida a escola fundada por Aristóteles e por que seus discípulos eram chamados de peripatético?
2) Explique o que é o método indutivo, utilizado por Aristóteles.
3) Dê um exemplo diferente do que aparece no texto para explicar o hilemorfismo, princípio da matéria e forma.
4) Explique como ocorrem as mudanças nos seres naturais e nos seres artificiais.
5) Utilize o exemplo de um “lápis” para explicar as quatro causas dos seres, conforme Aristóteles.


Referência Bibliográfica:
CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. São Paulo: Atual, 2002. (p.60-63)
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2016. (p.227-230)

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Leituras Filosóficas – Descartes e Pascal


Introdução

Para ampliar o estudo sobre Antropologia Filosófica, pode ser feito um exercício de reflexão com a ajuda de dois filósofos: Pascal e Descartes. Aqui você terá a oportunidade de primeiro, ter contato com fragmentos de textos filosóficos e segundo, refletir sobre a importância de nos considerarmos animais em meio aos demais seres da natureza.

Em geral, a Filosofia e as ciências contam com uma vasta literatura que aborda a importância de se distinguir o ser humano dos demais seres da natureza. Já no século XVII, e com mais vigor a partir do século XIX, as ciências se afirmaram como conhecimento capaz de não apenas demonstrar a superioridade humana na natureza, mas de conceber a necessidade de dominar essa mesma natureza, construindo a ideia de que não somos apenas diferentes, mas superiores aos outros seres. Essa consciência pode ter impulsionado todas as maravilhas técnicas e científicas que a humanidade edificou. Mas responde também pela ilusão de que somos capazes de intervir e controlar a natureza sem consequências desastrosas para nós mesmos e para todo o planeta.

Uma ideia importante é considerarmos a perspectiva de não nos vermos como seres distintos e superiores, mas distintos e ocupantes de um mesmo contexto material, natural; distintos e responsáveis justamente por sermos seres de consciência, capazes de prever consequências, assumir equívocos e de rever metas contemplando a preservação da própria vida e a de outros seres.

René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662) nos oferecem dois textos interessantes para inspirar essa consciência sobre nossa inserção em uma natureza material assim como a todos os seres que nos cercam. Ambos foram escritos no século XVII.
Destacamos dois fragmentos desses textos para a reflexão:

Meditações (Texto de Descartes)


E, primeiro, não existe nenhuma dúvida que tudo o que a natureza me ensina contém algo de verdadeiro […]. Ora, não há nada que essa natureza me ensine mais claramente nem mais sensivelmente que o fato de eu ter um corpo que fica indisposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber quando tenho os sentimentos de fome ou de sede etc.
E, portanto, eu não posso absolutamente duvidar que tenha alguma verdade nisso. A natureza me ensina também por meio desses sentimentos de dor, fome, sede etc. que eu não estou apenas alojado em meu corpo como um comandante em seu navio, mas que, além disso, lhe estou muito intimamente conjugado e tão entrelaçado e misturado que componho um único todo com ele. [...] Além disso, a natureza me ensina que vários outros corpos existem em volta do meu, alguns dos quais devo seguir e de outros fugir.

DESCARTES, René. Oeuvres philosophiques de Descartes. Adolphe Garnier (Org.). V. 1. Paris: Librairie Classique et Élémentaire de L. Hacuette, 1835. Disponível em: <http://goo.gl/bG4L0F>. Acesso em:  16 out. 2013. Tradução Célia Gambini.


O homem perante a natureza (Texto de Pascal)

            A primeira coisa que se oferece ao homem ao contemplar-se a si próprio é seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar. Mas, para compreender o que ela representa e fixá-la dentro de seus justos limites, precisa compará-la a tudo o que se encontra acima ou abaixo dela. Não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestade.

Considere esta brilhante luz colocada acima dele como uma lâmpada eterna para iluminar o universo, e que a Terra lhe apareça como um ponto na órbita ampla deste astro e maravilhe-se de ver que essa amplitude não passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. E se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará ela de conceber, que a natureza de revelar.

Todo esse mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado a conhecer de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além de espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas. [...]

Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve.

PASCAL, Blaise. Parte dois. Pensamentos. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Se um texto (Descartes) traz a visão de conflito do homem consigo mesmo, o outro (Pascal) traz a ideia de nossa limitação diante da natureza. Duas condições básicas da existência humana que precisam ser corajosa e filosoficamente enfrentadas para a compreensão do ser humano. Qualquer projeto educacional com vista à preservação da natureza, e com esta à preservação da humanidade, requer conscientização sobre nossos limites e nossas necessidades como seres corpóreos que até o presente momento nada sabem sobre seu início, seu fim e que continuam a destruir-se mutuamente.

Para o seu estudo, localize no texto os seguintes pontos:

- A afirmação enfática de que somos um corpo;
- A imagem de que a natureza me ensina que convivo com outros corpos;
- A ideia de que fujo de alguns e de outros me aproximo;
- A ideia de que não vemos, não compreendemos nossos extremos: nem fim, nem princípio;
- Aa ideia de que somos nada em relação ao infinito, porém somos tudo em relação ao nada.

Referência Bibliográfica

São Paulo (Estado) Secretaria da Educação.
Material de apoio ao currículo do Estado de São Paulo: caderno do professor; filosofia, ensino médio, 3a série / Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, Adilton Luís Martins, Luiza Chirstov, Paulo Miceli, Renê José Trentin Silveira.  -  São Paulo: SE, 2014.